PesquisarOportunidadesEventosSobre a C&Hubs
C&
Revistas
Projetos
Education
Comunidade
Colombian Pacific

Memória e esquecimento no Pacífico colombiano

Memory and Amnesia in the Colombian Pacific

Fabio Melecio Palacios, Tramo/traza. 500 metros de – abundância e resistência –, Zaragoza, Vale do Cauca, Colômbia. Foto: Felipe Sánchez Villarreal.

21 August 2018

Magazine América Latina Magazine

Words Felipe Sánchez Villareal

6 min de leitura

O projeto possibilitou diálogos entre a arte, a ação política e a defesa do território dos povos afro-colombianos.

Bajamar, a performance apresentada pelo artista afro-cubano Carlos Martiel, no Museu la Tertulia de Cáli, no dia 9 de agosto de 2018, condensa bem a metáfora: os espectadores sobem por uma escada branca que desemboca numa televisão. Nessa TV, sucedem-se maquetes em 3D de uma zona de carga, renders arquitetônicos do porto de Buenaventura. Se você não olhar para baixo, não verá: o piso do último degrau é de vidro e, abaixo dele, o corpo negro e desnudo de Martiel permanece imóvel, aprisionado dentro da escada. O espectador sobe essa escada quase sem perceber o que está fazendo ali e não se dando conta de que a subida só é possível passando por cima de seu corpo ferido e vulnerável: um corpo negro, que, apesar de tudo, não se curva frente à contenção e à fadiga.

A performance de Martiel foi uma das ações com que Carretera al mar (Estrada até o mar), evento organizado pelo Goethe-Institut e pelo Museu la Tertulia no contexto do projeto regional O futuro da memória refletiu sobre as formas da lembrança em meio às tensões raciais sócioeconômicas e territoriais do Pacífico colombiano. A região – e sobretudo os territórios que circundam a estrada entre Cáli e Buenaventura – sintetiza as contradições que tem marcado a história do desenvolvimento do oeste da Colômbia. Apesar da região do porto de Buenaventura e seus arredores movimentar 60% das mercadorias que entram no país, seus moradores vivem abandonados cruelmente pelo Estado. Essa tensão entre os processos de exploração e modernização da região, onde vive 25% da população afrodescendente da Colômbia, originou a ideia do projeto. Carretera al mar buscou “reconhecer a dimensão histórica da população afro-colombiana, tornar visível a violência e o abandono pelo qual ela vem passando e contribuir com o empoderamento de iniciativas que lutam por uma sociedade mais igualitária e inclusiva”, declara Wenzel Bilger, diretor do Goethe-Institut na Colômbia.

Acción Errorista, march of the Argentinian collective Etcétera. Photo: Felipe Sánchez Villarreal.

Acción Errorista, march of the Argentinian collective Etcétera. Photo: Felipe Sánchez Villarreal.

A partir da imagem da estrada, que representa a intrincada relação entre o porto e o interior, articularam-se experiências e práticas artísticas para, nas palavras da diretora do projeto Úrsula Mendoza, “questionar as formas hegemônicas de narrar a experiência comum”, perguntando como as práticas artísticas podem dinamizar processos políticos e territoriais. Assim, durante Carretera al mar, realizou-se um “percurso simbólico”, do qual participaram artistas, líderes sociais e pesquisadores, com o intuito de refletir sobre a elaboração do passado e os modos de agir no presente da mão de obra das populações negras do Pacífico.

As conversas e as atividades artísticas encadearam-se na qualidade de veículo de questionamento dos sonhos de progresso e dos processos de industrialização da região, assim como das violências raciais e territoriais. A rota se iniciou em Zaragoza (jurisdição de Buenaventura), com a ação Tramo/traza. 500 metros de – abundância y resistência – (Trecho/traça – 500 metros de abundância e resistência), do artista Fabio Melecio Palacios. Em cooperação com os moradores da região, Melecio Palacios recuperou um trecho abandonado da estrada de ferro que antigamente servia como artéria comercial entre Cáli e Buenaventura. Com a reapropriação das “brujitas”, transportes artesanais de madeira e rolamento de esferas, com os quais os habitantes da região podem se movimentar, o artista montou um espaço de reflexão móvel sobre as maneiras através das quais os habitantes da região reinterpretam subversivamente os espaços institucionalmente abandonados.

Fabio Melecio Palacios, Tramo/traza: 500 metros de –abundancia y resistencia–, Zaragoza, Valle del Cauca, Colombia. Photo: Felipe Sánchez Villarreal.

Fabio Melecio Palacios, Tramo/traza: 500 metros de –abundancia y resistencia–, Zaragoza, Valle del Cauca, Colombia. Photo: Felipe Sánchez Villarreal.

A artista Liliana Angulo, de Bogotá, apresentou alguns resultados de seu trabalho de dois anos de recuperação de arquivo com coletivos de La Cima e Isla de la Paz, em Buenaventura, através da memória e das lutas pela defesa de território do líder comunitário Temístocles Machado (Don Temis), assassinado em janeiro de 2018. A partir deste processo de recuperação documental, a artista questionou a forma como os moradores originais foram destituídos de territórios em nome do progresso industrial. “O cerne do que fizemos tem a ver com a voz de Don Temis: sua intenção era de que o arquivo fosse uma ferramenta para a defesa da comunidade contra os usurpadores da terra”, afirma Angulo. Sua pesquisa se vincula à do artista Óscar Moreno e seu projeto Rádio Conversa, para o qual foi gravada uma entrevista com Machado antes de sua morte. “Com seu assassinato, o áudio dessa entrevista se transformou num material fundamental. Com sua voz e seu arquivo, queremos reinvindicar seu trabalho para justificar o pertencimento do território e a posse da terra da comunidade”.

Liliana Angulo, Por la defensa del territorio de Buenaventura: archivo y monumento Temístocles Machado. Foto: Felipe Sánchez Villarreal.

Liliana Angulo, Por la defensa del territorio de Buenaventura: archivo y monumento Temístocles Machado. Foto: Felipe Sánchez Villarreal.

Durante cinco dias, a Carretera propiciou diálogos entre a arte, a memória, a ação política e a defesa do território dos povos afro-colombianos. O coletivo CaldodeCultivo transformou um importante monumento de Cáli “em um cenário para treinar as lutas do povoado”. Apresentações de taekwondo, parkour, hip hop e box misturaram-se a mingas e encontros com a Guardia Cimarrona del Norte del Cauca, a Guardia Indígena de la Delfina (Buenaventura), e com pensadores afro-diaspóricos e defensores dos direitos humanos. O coletivo argentino Etcétera levou as pessoas às ruas com uma marcha carnavalesca “contra o neoextrativismo” que, por fim, resultou num encontro com ativistas indígenas e afrodescendentes que estavam protestanto no centro de Cáli. “Nossos corpos negros tiveram que vivenciar as violências e roubos que vieram com a tal ideia de progresso”, declarou a líder ambiental do Cauca, Francia Márquez, uma das convidadas do encontro, durante sua intervenção com o coletivo radiofônico Noís Radio, na ação de encerramento da Carretera. “Mas o rio nos ensinou a falar duramente, a lutar pelo que acreditamos”.

Discussion panel in Coliseo El Pueblo, Cali. From left to right: Nidia Góngora, Amber Henry, Francia Márquez, Mary Grueso, Aurora Vergara. Photo: Felipe Sánchez Villarreal.

Discussion panel in Coliseo El Pueblo, Cali. From left to right: Nidia Góngora, Amber Henry, Francia Márquez, Mary Grueso, Aurora Vergara. Photo: Felipe Sánchez Villarreal.

Outras líderes afro-colombianas também acompanharam o projeto. Entre elas, a cantora Nidia Góngora, a poeta Mary Grueso, o professor e rapper Rhonal “El Teacher” Valencia e a pesquisadora Aurora Vergara. A lista de convidados internacionais incluiu a diretora argentina Lucrecia Martel, com sua master class sobre cinema e memória; o escritor mexicano Mario Bellatin, com uma reinterpretação performática de seu romance Salón de belleza, e a pensadora e dramaturga berlinense Hannah Hurtzig, que dirigiu um painel sobre morte e memória com Karin Harrasser, Claudia Mosquera e María Victoria Uribe. Os trajetos comuns articularam um potente mosaico de arte e lutas para reimaginar formas de vida e memória num território profundamente paradoxal: dentro e fora do projeto de nação, itinerário ao mesmo tempo de ida e volta do centro à periferia, entre os sonhos de progresso e exclusão radical. Como todos gritaram no encerramento: “O povo não se rende, caralho!”.

Carretera al mar, Goethe-Institut Colômbia.

Felipe Sánchez Villarreal é jornalista colombiano, editor online da Revista Arcadia.

Este artigo foi criado em cooperação com a revista cultural colombiana Revista Arcadia.

Mais artigos de

“Imagen Regional”: In Search of the Colombian Pacific

“Imagem Regional”: em busca do Pacífico colombiano

Transformation Between Art And Cuisine

A transformação entre a arte e a gastronomia

Dulce Tumaco in Bogotá

Dulce Tumaco em Bogotá

Mais artigos de

Formal black and white group portrait of dozens of men, mostly Black, and one woman, in suits and traditional clothing, gathered outside a building.

Paris Noir: Pan-African Surrealism, Abstraction and Figuration

Black and white group portrait of many formally dressed Black men and one woman posing outdoors.

Paris Noir: Surrealismo, Abstração e Figuração Pan-Africana

A spacious, brightly lit white room with an industrial ceiling, sparsely furnished with wooden tables, bookshelves, colorful stools, and leather seating, including a backgammon game.

Maktaba Room: Annotations on Art, Design, and Diasporic Knowledge