O que significa o ataque a obras de arte em Brasília?

Invasão do prédio do Congresso Nacional. Foto: Pedro França/Agência Senado
25 January 2023
Magazine América Latina Magazine
Words Luciara Ribeiro
7 min de leitura
Uma reflexão sobre as táticas da extrema direita no Brasil e no mundo contra o patrimônio cultural.
No último dia 8 de janeiro, o Brasil parou diante de terríveis cenas provocadas por extremistas de direita que invadiram o Palácio do Planalto. As ações abusivas, além de colocarem o estado de direito e a democracia em risco, desrespeitaram a população brasileira e provocaram danos ao patrimônio e aos cofres públicos. Autodenominados “patriotas” e defensores do país, os extremistas destruíram estruturas arquitetônicas, mobílias, equipamentos eletrônicos, documentos governamentais e peças de arte que ornavam o ambiente. Nem mesmo objetos que poderiam ser lidos como nacionalistas foram poupados. Alguns exemplos são: a pintura Bandeira do Brasil, de Jorge Eduardo; a escultura em bronze do brasão da República; e a versão original da Constituição Brasileira de 1988.
O inacreditável episódio de aproximadamente três horas deixou rastros de destruição por onde passou, mas também se estendeu para a vida dos brasileiros, que ainda buscam formas de lidar com os impactos gerados. Na tentativa de promover caminhos reflexivos para o momento, buscando compreender este capítulo dentro do confronto ideológico e político que tece o Brasil, apresentamos algumas linhas e referências.

Invasion of the National Congress Building. Photo: Jefferson Rudy/Agência Senado
O livro Guerras culturais em verde e amarelo, organizado pelo Professor Doutor Pedro Arantes, docente do Departamento de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo, em parceria com discentes e pesquisadores da mesma universidade, analisa a situação atual através de seus usos ideológicos, passando por produções que ocupam espaços na publicidade, no cinema e nas redes sociais, como memes, correntes de WhatsApp e vídeos do TikTok. Para o professor, vivemos uma guerra cultural onde as imagens e os objetos de arte são utilizados como elementos de combate ideológico, econômico e político. Ao que diz respeito ao regime extremista de direita, segundo o professor e o doutorando André Okuma, “esta nova direita tem organizado uma reação, estudado e atuado de forma incisiva na guerra cultural, como parte de uma estratégia mais ampla de reconquista de uma hegemonia global conservadora (para alguns denominada de neofascista e para outros teocracia cristã), não apenas no campo cultural, mas também econômico e político”.
O embate simbólico com as imagens está na pauta da extrema direita, e não por acaso teve como foco em seu ataque. O que pode nos assustar num primeiro momento, logo se encaixa no grande quebra-cabeça ideológico que tais terroristas defendem. Defensores de princípios nazi-fascistas, tanto o grupo quanto o seu líder político, o ex-presidente Jair Bolsonaro, repetem métodos de controle presentes em sistemas extremistas, totalitários, ditatoriais e coloniais, como a destruição ou controle de objetos culturais. Podemos recuperar alguns exemplos históricos onde o domínio do conhecimento crítico e o sensível se deu pelo saque, agressão e posse dos bens culturais e artísticos, como os regimes coloniais europeus nas Américas, Ásia e África; os governos nazi-fascistas na Europa; e as ditaduras na América Latina. Uma das bibliografias que contam relatos terríveis desta prática é África Fantasma, livro elaborado a partir do diário de viagem de Michel Leiris, secretário-arquivista da missão-expedição lingüística e etnográfica francesa Dakar-Djibuti, que descreve cenas de extremo terror contra as comunidades africanas dos territórios por onde passaram. As formas violentas de ataque aos bens visuais-culturais envolviam avariar, quebrar, roubar e até incendiar.

Vale lembrar que o ataque às imagens e a cultura, principalmente as de matrizes africanas e indígenas, foi frequente no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, que já nos primeiros meses de mandato, fechou o Ministério da Cultura e ignorou as manifestações da classe artística. Nesse mesmo período, sem muitas justificativas, o ex-presidente retirou de exibição da pintura Órixás, da artista paulista Djanira da Motta e Silva, que representa divindades cultuadas em religiosidades afro-brasileiras, como o Candomblé e a Umbanda. Assumidamente religioso de vertente cristã conservadora protestante, a remoção da peça evidenciou a não aceitação da convivência cultural harmoniosa entre religiões e seus símbolos, além de reforçar perseguições às crenças de matrizes africanas.
Outro episódio emblemático de embate de Bolsonaro com as imagens foi a perseguição e retaliações do chargista Renato Aroeira. Após fazer uma charge crítica relacionando a declaração pronunciada pelo então presidente – que convocou seus apoiadores a invadirem hospitais nos primeiros meses de pandemia da COVID 19 – com o símbolo da suástica nazista, o artista recebeu convocações da polícia federal que buscava enquadrá-lo na Lei de Segurança Nacional.

Soldiers from the Brazilian National Public Security Force, in front of the Federal Supreme Court, at Praça dos Três Poderes in Brasília. Photo: José Cruz/Agência Brasil.
O uso arbitrário da autoridade e do poder é um padrão em Bolsonaro e seus seguidores, que colecionam ações como as mencionadas. Entretanto, se de um lado há o constante ataque, do outro se mantém firme o contra-ataque. A classe artística aliada às lutas democráticas pela liberdade não esmoreceram, mantiveram a luta por políticas públicas e projeções de futuro. O livro O fim do Ministério da Cultura – Reflexões sobre as políticas culturais na era pós-MinC, organizado, em meados de 2021, pelo cientista político Rafael Moreira, apresenta os impactos da perseguição de Bolsonaro à cultura e as ações de diversos agentes em seu enfrentamento. A obra demonstra que, historicamente, a política cultural brasileira tem sido pouco valorizada, mas que o governo Bolsonaro a levou a níveis de extrema precariedade, o que só não foi pior devido à luta e reivindicações constantes da classe artística.
A sonhada retomada do Ministério da Cultura foi concretizada pelo atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que além de retomar o órgão, nomeou a cantora, ativista e gestora, Margareth Menezes, como ministra, produzindo uma das já memoráveis imagens deste ano que acaba de começar.

Demonstration in Cinelândia in defense of democracy after coup acts in Brasília. Photo: Fernando Frazão/Agência Brasil.
Menezes, ao se deparar com as imagens da destruição do dia 8, não temeu, e firmou o seu compromisso com a criação do futuro Memorial da Democracia, espaço que se dedicará a acolher narrativas e objetos relacionados às lutas democráticas, que nos servirá para lembrar tanto das manifestações que a favorecem quando as que a atacam. Apesar da importância da futura instituição, a mesma não garantirá que novos episódios extremistas, como o do dia 8, não se repitam. Se faz necessário mudanças radicais que alterem as lógicas sob as quais estamos vivendo, ainda à sombra dos poderes de uma elite mesquinha, brancocentrada e neoliberal, regida por jugos da colonialidade, que favorecem a desigualdade, o racismo estrutural, o etnocídio, e diversas outras mazelas que nos afligem há séculos. Se faz urgente a ampliação e inserção de novos protagonistas da história brasileira.
Em cena histórica, no domingo que antecedeu os ataques, o presidente subiu a rampa do Planalto juntamente com sete representantes da sociedade civil, promovendo um reconhecimento de parte da população brasileira que não se enxergava no governo anterior e que ainda se vê pouco nas páginas da política e da história do país. Ainda há muito o que se fazer para reconfigurar as imagens nacionais, as memórias públicas, as noções e políticas do patrimônio artístico-cultural, o bem-estar social, a dignidade e o direito de todos os brasileiros de se reconhecerem sujeitos críticos, sociais e políticos. No entanto, nada justifica a banalização e deslegitimação dos processos democráticos, que violam a memória e a história, promovendo o caos e a estupidez generalizada. Tanto no Brasil como no mundo, a diversidade artística não é somente um símbolo da democracia mas também um dos pré-requisitos para mantê-la.
Luciara Ribeiro é educadora, pesquisadora e curadora. É mestra em História da Arte pela Universidade de Salamanca (USAL, Espanha, 2018) e pelo Programa de Pós-Graduação em História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP, 2019). É colaboradora de conteúdo da Diáspora Galeria e docente no Departamento de Artes Visuais da Faculdade Santa Marcelina.
Mais artigos de






